Gênios ou loucos?



Grigory Perelman gosta de colher cogumelos, evita conversar com as pessoas e raramente corta as unhas ou faz a barba. Veste as mesmas roupas cinzentas e caminha sempre com o olhar fixo no chão. Desempregado, vive com a mãe num pequeno e desinteressante apartamento em São Petersburgo, em condições financeiras precárias. Se não tivesse resolvido um dos mais famosos problemas da matemática, provavelmente não despertaria nenhuma curiosidade. Tido como excêntrico e recluso, o matemático russo de 43 anos é um dos maiores gênios da atualidade.
Em março, o cientista recusou a premiação de US$ 1 milhão oferecida pela fundação Clay Mathematics Institute (CMI), de Massachusetts, por solucionar a Conjectura de Poincaré, formulada há mais de um século pelo matemático francês Henri Poincaré e considerada, por sua complexidade, um dos “sete desafios do milênio”, o único solucionado até agora. O prêmio não foi o único desprezado. Em 2006, recusou também a Fields Medal, considerado o “Prêmio Nobel” da Matemática.
Perelman conseguiu decifrar o espaço tridimensional fechado, sem “buracos”, que deve ter essencialmente a forma de uma esfera, mas não conseguiu encontrar respostas em seu próprio ecossistema cerebral para o labirinto social em que vive. Medir a inteligência e descobrir o seu impacto sobre as emoções humanas sempre foi um desafio.
LOUCO POR CIÊNCIA OU CIENTISTA LOUCO?
Dois outros casos conhecidos na história mostram os dilemas dos gênios diante da vida: o matemático austríaco Kurt Gödel (1906-1978) e o britânico Alan Turing (1912-1954), ambos descritos milimetricamente por Janna Levin, ph.D. em física pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology), em seu livro Um louco sonha a máquina universal (2006).
A descoberta de Gödel (Teorema da Incompletude) foi um dos acontecimentos científicos mais importantes do século 20, o que não o livrou do medo obsessivo de ser envenenado. Por várias vezes, deixou de comer até que sua mulher (Adele) provasse antes a comida. No final da década de 1970, com a companheira hospitalizada, o cientista passou a reduzir a comida até rejeitá-la totalmente. Morreu com pouco mais de 30 quilos, por “desnutrição causada por distúrbio de personalidade”.
Alan Turing, chamado de “o pai da computação”, também não escapou de uma trajetória complicada. O matemático foi um dos maiores influenciadores de tudo o que conhecemos como Ciência da Computação. Em Londres, teve infância difícil, confusa e introvertida, mas logo mostrou que era gênio e, talvez por isso mesmo, pouco disposto a aceitar a imposição de quaisquer tipos de regras. Turing, no entanto, tinha uma incrível capacidade analítica e entrou para a história definindo uma “máquina abstrata” (que nada mais era do que um modelo de computador), mais tarde conhecida como a Máquina de Turing. Por seu brilhantismo, teve uma carreira de grande respeito, tendo colaborado decisivamente com os aliados durante a Segunda Grande Guerra ao decifrar códigos complexos.
Todo seu prestígio não evitou que em 1952 fosse preso por sua declarada homossexualidade (atentado ao pudor), enfrentando um dramático julgamento no qual foi condenado. Acabou não sendo castrado cirurgicamente, mas quimicamente, tomando doses cavalares de estrogênio que o deixaram impotente e com seios visivelmente desenvolvidos. Certo de que não lhe caberia outra coisa se não o suicídio, o programou com maestria: depois de mergulhar uma maçã em porção de cianeto de potássio, sentou-se à beira da cama, rompeu a casca da fruta com uma mordida, cambaleou, espumejou ao redor dos lábios e morreu na noite de 7 de junho de 1954.
Além de Janna Levin, outro cientista que analisou a bizarra e excêntrica vida dos gênios foi Clifford Pickover, no livro Strange Brains and Genius: The Secret Lives of Eccentric Scientists and Madmen. O croata Nikola Tesla (1856-1943), por exemplo, conhecido por ser o descobridor da unidade de densidade do fluxo magnético (Tesla), era visto como um cientista louco. Tinha pavor a vermes, a brincos de pérolas, acreditava ouvir mensagens de Marte, além de desenvolver uma curiosa paixão por pombos, especialmente os brancos.
Já o inglês Oliver Heaviside (1850-1925), que estabeleceu as bases matemáticas para os circuitos elétricos, gostava de trabalhar em lugares minúsculos e de ficar na escuridão. Outro claustrófilo ilustre foi o escritor e bioquímico americano Isaac Asimov, que também tinha aversão a entrar em aviões (aviofobia).
O americano Ted Kaczynski (1942), gênio da matemática (QI 170), mais conhecido como Unabomber depois de uma série de atentados que o levaram à prisão perpétua, se afastou, antes, do círculo social para viver como eremita numa cabana na floresta.
John Nash (retratado no filme Uma mente brilhante), que desenvolveu a Teoria dos Jogos, pela qual recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 1994, foi considerado, no início da carreira, um doente inconveniente para a sociedade dos anos 1950 por sua esquizofrenia. Foi internado e tratado com choques, tendo ficado afastado da universidade por longo período até obter lenta recuperação.
Casos como esses não faltam na história. Mas até que ponto “os mais inteligentes” são mais suscetíveis às excentricidades e à loucura? De acordo com o psiquiatra Paulo Quinet, diretor da Federação Brasileira de Psicanálise, não existe qualquer prova científica que fundamente a relação entre inteligência, excentricidade, criatividade e doenças mentais. “Muitas pessoas são excêntricas e inteligentes. Mas também é possível ver vários cientistas, inclusive ganhadores do Prêmio Nobel, que são pessoas completamente normais e não chamam atenção. O excêntrico acaba, mesmo sem intenção, chamando a atenção dos outros. Então, as pessoas começam a acreditar que existe essa relação direta, e não tem”, afirma.





MÚLTIPLAS INTELIGÊNCIAS
No início do século 20, o pedagogo e psicólogo francês Alfred Binet desenvolveu o primeiro teste de aferição da inteligência, base para os famosos testes de QI (quociente de inteligência), usados até hoje. Mas foi o psicólogo americano Howard Gardner quem botou lenha na fogueira, quando lançou, em 1983, o livro Estruturas da mente, que especifica a existência de sete tipos de habilidades mentais, incluindo dotes artísticos, habilidades esportivas e até capacidade emocional. Segundo ele, nós nascemos com todas essas inteligências, que ao longo do tempo vão evoluindo, umas mais e outras menos, sendo somente o conjunto delas o indicador de nosso perfil de inteligência. Dizia ele: “De que adianta saber que alguém tem QI de 90 (abaixo da média), 110 (acima) ou que pode chegar a 120 (brilhante) com algum treino se, no final das contas, não fizer nada relevante na vida?”
Paulo Quinet explica que o teste de QI, por exemplo, não é mais visto como absoluto, porque existem várias formas de inteligência, desenvolvidas em diferentes áreas. “O Mike Tyson é um cara inteligente? A maioria vai dizer que não, mas ele é. Porque tem uma inteligência motora que o transformou num campeão do boxe. O Garrincha tinha capacidade de calcular mentalmente o impulso que dava o trajeto da bola. Se um matemático brilhante calcular milimetricamente esse movimento, não conseguirá executar. O que devemos considerar hoje são as inteligências múltiplas. Existem pessoas brilhantes, consideradas gênios, que não se desenvolvem em outras áreas. Einstein é um exemplo disso. Gênio da matemática, mas socialmente inábil”, diz.
Os chamados “gênios”, com alto QI, podem ter diferentes formas de se ajustar ao seu meio e à sua própria realidade intelectual. Nem sempre a sociedade está pronta para entendê-las. Para Jacob Palis Junior, presidente da Academia Brasileira de Ciências, isso ocorre porque o cientista tende a se concentrar profundamente na descoberta de seu problema. “Nada é por acaso. Existe um preço, que é a concentração, a dedicação. E, por isso, ele tende a ser mais distraído frente às necessidades usuais de um cidadão comum, que não é cientista. Com o tempo, percebemos que é muito importante que a sociedade nos entenda. Mas isso não é muito fácil.”
No Brasil, estima-se que existam cerca de 200 mil cientistas e pesquisadores. “A ciência brasileira tem avançado muito, especialmente na última década. Não só em quantidade de pesquisadores, como também em qualidade, gerando reconhecimento da própria comunidade internacional de cientistas e isso é uma grande vitória para o país”, comemora Palis.
HORROR AO INVÍSIVEL
A relação entre a excepcionalidade, a qualidade destrutiva intrínseca dos gênios e as reações sociais foram estudadas pelo psicanalista Claudio Castelo Filho, que é doutor em Psicologia Social (USP) e membro efetivo, professor e pesquisador do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). No livro O processo criativo: transformação e ruptura, Claudio Castelo explica que, apesar de os grupos desejarem que exista sempre um gênio que traga o novo para a sociedade, geralmente, quando ele revela o que nunca foi visto, a reação é de horror. “Um gênio é capaz de perceber aquilo que as outras pessoas não veem, num nível criativo considerado diferenciado. A pessoa que vê o que ninguém vê geralmente assusta. Quando se acredita que a Terra é plana e chega Copérnico dizendo que ela é esférica, as pessoas ‘comuns’ acham que o chão sumiu. Os parâmetros em que elas se apoiam desaparecem quando a nova realidade é revelada”, explica. Claudio Castelo, além de psicanalista, também desenvolve um trabalho intenso ligado à pintura com várias exposições no currículo.
A dificuldade vai além do ambiente e passa a ser do próprio gênio, que é capaz de ver o novo. “A própria pessoa criativa pode se espantar com aquilo que é capaz de perceber. Darwin, quando percebeu sua teoria da evolução, ficou apavorado, porque ia contra o que tinha aprendido e tido como sagrado. Tanto que levou anos para publicar. A própria mulher se horrorizou. Como muitos se horrorizam até hoje”, conta.
O brilhantismo, esse ver além, nem sempre é bem entendido pelos próprios gênios. “A vivência em solidão é muito grande, porque as pessoas não entendem o gênio. É preciso lidar com um nível de turbulência emocional que é difícil de administrar. Isso pode desorganizá-lo internamente. Depende muito da personalidade, que pode facilmente se fragmentar. Com isso, ele pode desenvolver uma série de modos próprios para lidar com as situações. Às vezes, o gênio precisa de ajuda para poder lidar com a própria inteligência”, conclui Claudio Castelo.
Exigir coerência dos “geniais” quanto ao seu modo de ser, pode ser arriscado e conspirar a favor da tolice humana. Não há “verdades absolutas” para os gênios, o que, para nós, simples mortais, elas são quase uma obsessão. Citando Goethe: a primeira e a última coisa exigida de um gênio é o amor à verdade.

ROTINA DE GÊNIO

Incansáveis formatos de busca, ritos cerebrais e comportamentais de grande complexidade. Essa é a rotina de um cientista, independentemente de sua área de atuação. Leonardo Da Vinci adotava uma pragmática forma de resolver um problema complexo: no começo, aprendia muito sobre ele; depois, o reestruturava de diferentes modos. Para ele, o primeiro “olhar” sobre um problema era demasiado parcial e comumente o problema, com outra estrutura, reconstruído, poderia transformar-se em algo bem menos complexo. Já Einstein, quando diante de um enigma, tinha uma enorme necessidade de formular seu enunciado das mais variadas formas (quase sempre utilizando diagramas). O genial Thomas Edison (mais de mil patentes) estabelecia para si próprio uma “cota de ideias” sobre um determinado problema e se punha a trabalhar incansavelmente até o limite estabelecido.
Hilário Alencar, presidente da Sociedade Brasileira de Matemática (SBM), explica que a rotina de quem trabalha com ciência é pensar o tempo todo no problema. “Muitos cientistas têm nisso um plano de vida. E ficam focados dia e noite. Às vezes, demoram anos para resolver um problema. O cotidiano fica menor. É um desafio para a mente humana. Se consegue vencer esse desafio, a satisfação é muito grande. O prazer maior é resolver o problema”, diz.
Fonte: Kelly de Souza / Revista da Cultura



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