Literatura Marginal
( Extraída do jornal Diário da manhã 17 de Fevereiro de 2002)
Experiências de presidiários e ex-presidiários no cárcere viram livros e solidificam, a cada dia, um novo segmento de escritores brasileiros.
Por Renata Tranches
Quem passa próximo aos muros do Carandiru, em São Pulo, não gosta nem de imaginar o que se passa lá dentro. “Antes, quando passava em frente, até me benzia.”, diz Josemir Prado, autor do livro Diário de um Detento: O Livro. Josemir ficou conhecido nacionalmente depois que um de seus poemas virou letra para o rap Diário de um detento, do grupo Racionais mc´s.Com a troca do nome feita por Mano Brown, líder do grupo, Josemir virou Jocenir. Mas, qual é a sua história?
Assim como milhares de brasileiros que tiveram uma boa criação, com base familiar, religiosa, e tudo mais a que se tem direito, Jocenir nunca imaginou que um dia pudesse ver, ou pior, viver os horrores de uma prisão brasileira.
Vítima do que ele chamou de uma trapalhada policial, Jocenir foi preso e acusado de receptar mercadoria roubada. Na verdade, Jocenir estava na hora errada, no local errado. “Acabei virando bode expiatório”. Foram 4 anos de privações, humilhações, solidão e luta, principalmente para não perder a dignidade, tão exposta e suscetível ás fraquezas iminentes numa prisão.
A experiência de quem sempre teve uma vida de classe média, fez curso superior, teve várias oportunidades e depois caiu numa cela e viu o outro lado, Jocenir conta em seu livro, que já está na 3º edição.
Na prisão, ele descobriu o dom de escrever, o que, segundo ele, salvou sua vida, em vários sentidos. Primeiro pelo fato de ser um “letrado” entre homens que mal sabem escrever seu próprio nome. Isso lhe deu força, proteção e simpatia entre os traficantes e os presos mais poderosos. Segundo, porque a escrita lhe ocupava a mente e o ajudava a preencher o tempo ocioso, sem cair em depressão.
O escritor explica que, na prisão, o homem tem 3 opções: suicídio, drogas ou ocupar a mente com alguma coisa q tbm lhe dê simpatia entre os presos. Ele escolheu a 3º. Jocenir diz q os suicídios, infelizmente, são muito comuns. “Alguns não superam o imapacto emocional”.
A droga é um caminho quase inevitável, muitos já entram viciados ou se tornam depois. “Os jovens q entram lá perdem o pingo de dignidade q ainda têm ao se depararem com as drogas,” diz.
Ele conta q o “calcanhar de Aquiles” das prisões é o analfabetismo. “A maioria não sabe ler nem escrever”. Jocenir começou a escrever cartas e, no final delas, colocava versos e poesias. Essas cartas fizeram muito sucesso, principalmente quando ajudavam na reconciliação de casais de namorados. “Muitos me apresentavam á namorada explicando que eu era o autor das poesias”, diz. Com o tempo, ele conquistou a simpatia e a confiança por onde passasse. “Eu era amigo de traficante sem vender ou consumir droga, e amigo de bandido sem roubar ou matar”. Ele diz ainda que no começo, sofreu discriminação por ter uma cultura diferente e foi vítima de muito preconceito. Uma situação em que ter diploma no currículo era o problema.
Jocenir lembra que não tinha pretensão de fazer um livro. Seus rascunhos eram somente um desabafo. Quando foi transferido do Carandiru para a Penitenciária de Avaré, Jocenir não queria mais escrever versos e poesias. Lá, ele não escrevia tanto para outros presos como antes e seus poemas lhe faziam lembrar da esposa e de casa. Com isso, mesmo em condições precárias de iluminação, ele passou a registrar suas lembranças e experiências do que tinha vivido até ali.
Quando saiu da prisão, Jocenir conta q foi muito assediado pela mídia em razão do rap dos Racionais. O jornalista Carlos Eduardo de Oliveira, da Abril Cultural, pediu para ver seus rascunhos e ficou impressionado com o q leu. Carlos procurou várias editoras. “Naquela época, ninguém queria saber da literatura marginal, q acabou virando febre depois”, diz Jocenir. O jornalista procurou então a editora Labortexto, que já tinha publicado o livro Capão Pecado, de Férrez, que conta a vida nas periferias das grandes cidades. O editor da Labortexto se interessou muito pelo material e, depois de conversar com o jornalista e com Jocenir, decidiu publicar Diário de um Detento: o livro.
Jocenir é autor tbm do artigo, A Lua e eu, publicado numa edição especial da revista Caros Amigos: Literatura Marginal. Esse artigo fala do ápice de sua solidão na prisão, quando a lua passa ser sua companheira, ouvindo e respondendo aos seus lamentos. Além desta, Jocenir tem muitas outras crônicas que falam de drogas, polícia, prisão, entre outros. Jocenir adianta q em breve estará lançando outro livro: A liberdade está no ar. Nele, o escritor fala de sua volta á liberdade e readaptação no convívio com a família e com os amigos. Jocenir afirma tbm q nesse novo livro ele contará sobre o apoio q recebeu de sua fiel esposa durante todo o tempo em q esteve preso.
O 8º capítulo do livro fala sobre a visita do rapper Mano Brown. Nele, Jocenir conta “não tive nenhuma reação de contentamento ou euforia, até aquele momento não tinha muita referência sobre o rap e o mundo q o envolve, o hip hop(...) Entretanto, sabia da admiração e do respeito q os presos cultivam pelo rap, em especial os mais jovens.”
Mano Brown, com a permissão de Jocenir, arrancou algumas folhas de seu caderno. Dois anos depois, ele foi saber q um de seus versos tinha virado música e fazia o maior sucesso em todas as rádios. Ele afirma q tem recebido os direitos autorais por execução das músicas. “Ainda falta definir os direitos autorais por vendagem, mas nunca tive problema com Mano Brown.”
Sistema falido – Jocenir denuncia q o poder público na prisão é zero. Ele diz ainda q não existe assistência social, médica, odontológica ou jurídica. “É uma ilusão achar q existe alguma assistência na prisão. Pedi pra falar com uma assistente social e saí de lá sem ver a cara dela. É um abandono muito grande.”
O escritor afirma q os presídios são mais um apêndice da miséria brasileira, onde estão jovens q não tiveram nenhuma oportunidade. Jocenir diz q, apesar daquilo tudo, ele era feliz, porque era um privilegiado por ter estudo, cultura, base familiar. “Essas coisas me davam equilíbrio.”
Segundo o escritor, a maneira como aqueles jovens vêem as coisas são completamente diferente da maioria das pessoas. “Enquanto eu olho para um carro importado e bonito e penso q um dia posso ter um, aqueles jovens olham pro mesmo carro e pensam q ele pode valer uns 2 conto no desmanche.”
Passando pelas cadeias públicas de Barueri e Osasco e depois pela Casa de Detenção do Carandiru, Jocenir conheceu bem o inferno a q são submetidos os infratores no Brasil, onde a reabilitação de um homem é utopia. Com a clareza q tem só quem viveu naquele meio, o escritor passa os detalhes da vida numa prisão e afirma q agente carcerário serve para ser comprado por cigarro, e traficantes detêm total controle sobre a vida dos mais fracos, cabendo a eles julgar e penalizar segundo as regras internas criadas, evidentemente, por eles. Jocenir explica q os agentes carcerários dos presídios paulistas são mal preparados e, principalmente, mal remunerados. Eles têm o assédio dos traficantes 24 horas por dia e, depois q ele se vende uma vez, não consegue parar mais. O escritor explica q, em média, o salário de um agente é de 830 reais por mês. Com o tráfico, ele pode ganhar até 3 mil reais.
A todas as deficiências e horrores q encontrou nesses 4 anos, Jocenir chama de “circo de horrores”. Ele diz q, ainda q se separe a Casa de Detenção em presídios menores, como quer o Estado, não resolveria o problema. “O Carandiru pode até acabar, mas o inferno só vai mudar de lugar.”
Pra Jocenir, só a educação resolveria a violência no país. “Não tem solução sem educação”. Mas ele diz ainda q não é só aquela educação que ensina ler e escrever, é a q humaniza, q dá formação religiosa, familiar, com um trabalho social profundo. O escritor afirma q se continuarem a ser tratados como animais, os detentos vão sair de lá assim, como animais. “Se as coisas continuarem do jeito q estão, daqui alguns dias sentiremos saudade de como é hoje. É preciso humanizar os presídios.”
A Liberdade – Quem passar pela esquina da Rua 24 de Maio com a Praça da República, no centro de São Pulo, e olhar com atenção para uma das inúmeras bancas de camelô vai encontrar a de livros e quem está nela é Jocenir. Há 3 anos em liberdade, ele ainda sofre muito preconceito. “Achei q ia me estabilizar novamente, mas não foi bem assim.” Hoje ele trabalha como camelô para vender seu próprio livro, além de outros títulos da Labortexto q Jocenir compra e revende.
Além de ser o ganha-pão, a banca tem servido tbm para Jocenir fazer contatos e conhecer muita gente. “Sempre tem alguém aqui q conversa comigo e me dá um cartão para eu entrar em contato.”
Um dos sonhos de Jocenir, agora, é ser convidado para dar palestras a acadêmicos de direito, de jornalismo, entre outros, e contar sua experiência. “Há uma ausência muito grande dessas pessoas nas prisões.’ Ele explica q muitos homens continuam presos mesmo depois de terem cumprido pena, simplesmente por não ter ninguém q peça uma revisão nos processos e os coloque em liberdade. “Eu consegui colocar 22 presos na rua.”
O escritor não quer isentar a culpa de ninguém e sabe q, ao contrário dele, muitos estão presos pq cometeram um crime, mas o q Jocenir questiona é a desumanidade a q são tratados esses homens. Esse pensamento fica bem claro no capítulo Inferno, o primeiro do Diário
Trechos do livro
Inferno
É bem difícil definir o q seja o inferno. Sabemos q todos nós temos em nossas vidas fases q podemos chamar de inferno. Para alguns ele é um local, ou uma situação, para outros pode tratar-se de um estado de espírito.
Respeito os dramas pessoais de cada um, reconheço q existem situações bem piores do q estas q serão relatadas. Porém este é meu inferno, doloroso e meu. Meu e de milhares de companheiros q tentam sobreviver trancafiados.
Quero pintar um quadro q possa dar uma idéia do q se passa no interior de uma prisão brasileira, um quadro macabro, mas tbm repleto de histórias humanas.
A privação da liberdade, retirar o condenado do convívio social, não representa o maior sofrimento do homem q passa a fazer parte da realidade carcerária do país. A hipocrisia da elite, bem com das instituições públicas, não admite q esta idéia seja propagada: os distritos policiais, cadeias públicas e alguns presídios, antes de restringir a liberdade de um indivíduo, tirá-lo de circulação, são campos de concentração, senão piores, iguais aos q os nazistas usaram para massacrar os judeus na 2º Guerra Mundial. São verdadeiros depósitos de seres humanos tratados como animais.
Romances sobre a violência
Na ala A, Cela B-36 da Penitenciária Coronel Odenir Guimarães da Agência Goiana Do Sistema Prisional, antigo Cepaigo, vive Fábio José da Silva. Lá, ele cumpre a pena de 24 anos, dos quais já passaram quatro. Seu crime: um homicídio, cometido numa briga de bar.
Ele diz q sempre gostou de escrever, mas, desde q chegou na prisão, resolveu se dedicar á literatura. “Isso me dá um pouco de respeito,” diz.
Mesmo sem saber, Fábio faz parte da literatura marginal, gênero q tem crescido e despertado tanto interesse pelo país. Seus livros não denunciam maus-tratos de Pms ou condições precárias de sobrevivência como o de Jocenir e o de William. Ao contrário deles, Fábio afirma q, qnd escreve, quer esquecer q vive trancafiado numa cela.
Seu primeiro livro, Laços Quebrados, é um romance policial. Ele foi lançado pela editora goiana Kelps há pouco mais de um ano. Nele, Fábio fala da violência urbana a qual todos estão sujeitos. No romance, Fábio é o nome do personagem q, nessa história, é a vítima.
Ele é um advogado bem-sucedido q vê a sua vida, a de sua esposa e a da jornalista Ana Paula, sua amiga e personagem central do livro, se revirar ao descobrirem, por acaso, um local onde funcionava uma refinaria de cocaína.
O detento afirma q sua intenção é mostrar para todas as pessoas q elas devem tentar resolver seu problema da melhor forma possível, sem conflitos. Ele diz q, hoje, está arrependido do q fez e, se pudesse, não o faria. “Quero mostrar como se vive hoje, o amor sumiu e se morre por nada.”
Fábio está escrevendo agora mais dois livros. Um deles é um romance rural. As descobertas do universo adolescente é pano de fundo para o questionamento q ele faz sobre a negligência e o descaso de políticos q prometem a reforma agrária, mas não fazem nada para ajudar os pequenos agricultores. O detento disse q pretende fazer uma espécie de homenagem a esses ruralistas. “Sem eles não seríamos nada.” Fábio fala ainda sobre Movimento Sem-Terra, belezas naturais e o universo rural-o qual trata com a autonomia de quem já viveu nele e sonha um dia voltar.
Ele está no quinto dos 12 capítulos q pretende escrever. “Em Goiânia, livro grande não tem saída”, diz. Fábio afirma q mesmo estando em débito com a Kelps, a editora demonstrou interesse em publicar um 2º livro seu, q ainda não tem nome.
Simultaneamente, ele trabalha Brasil: País de Contraste. Nesse outro romance, Fábio fala, baseado no q vê diariamente nos jornais e na Tv, sobre corrupção, promessas políticas não cumpridas, violência, e outras coisas q têm manchado a imagem do País. “O Brasil está se tornando vergonha mundial.” Fábio espera q seus livros repercutam e divulguem suas idéias. “Quero q as pessoas não cometam mais crimes.” Além dos livros, Fábio tbm escreve poesias. No total, já são 125, suficientes para compor um livro somente delas.
Trecho de uma de suas poesias
Mas como o mais sublime entre os seus cardápios
Carrega a realidade
Traz consigo a ventania
Ás vezes transformando tudo em calmaria
Ás vezes rouba os sentimentos
Ás vezes torna-os pleno
Como surgiu o Comando Vermelho
A história de William da Silva Lima é um pouco diferente da de Jocenir, mas tbm está registrada em um livro: Quatrocentos conta um: Uma história do Comando Vermelho. O livro é uma outra publicação da Labortexto Editorial- referência em trabalhos da chamada literatura marginal.
Esse livro é mais um escrito por presidiário para denunciar a falência do sistema carcerário brasileiro. Dessa vez, seu personagem principal não é tão inocente qnt o de Jocenir. Foi preso pq praticou delitos. Longe de fazer apologia ao crime ou mistificar o bandido, Quatrocentos contra um é uma radiografia dos presídios brasileiros- especialmente os cariocas- feita por quem vive neles há mais de 30 anos.
William não adjetiva; pelo contrário, é sóbrio e sensato ao fazer uma contextualização política e histórica do Brasil. O autor tem uma particularidade: é um dos mentores do movimento q, 2º ele, a mídia chamou de Comando Vermelho. No livro, ele explica como esse movimento ganhou mais atributos do q devia nos jornais e na televisão. Mais q um grupo organizado pronto para espalhar o terror nas prisões, como foi tratado, o Comando Vermelho foi uma forma de sobreviver de maneira mais digna atrás das grades. E é isso q William tenta mostrar. Nele, o escritor conta como se enveredou pelo infortúnio caminho do crime e descreve sua saga pelas casas de detenção e presídios, começando com sua prisão no antigo RPM, Recolhimento Provisório de Menores, em SP, seguindo depois num vai-e-vem por presídios no Rj como Bangu e Ilha Grande.
Revolucionários – Brasil, 1964. como explica o livro, nesse ano começaram a chegar os primeiros presos políticos atingidos pelo golpe militar. Nessa época, assalto a banco poderia significar subversão. E foi um crime como esse q fez William ter seus dias de permanência no DOPS e DOI-CODI.
Ele explica q presos comuns têm, no mundo inteiro, certa tradição de adesão a movimentos revolucionários. Aqui no Brasil não foi diferente. Em razão dos assaltos a bancos, William foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, mas, nos presídios, ele e seus companheiros não dividiram as mesmas celas dos presos políticos. Viraram então a turma do Fundão. Num outro trecho do livro, ele explica: “O q se passou mais tarde veio confirmar nossas suspeitas: aos presos políticos foi dada anistia enquanto nós fomos lentamente aniquilados.” Como herança política ficou a organização dos grupos com o objetivo de diminuir os conflitos internos e traçar estratégias para ganhar a liberdade, de forma legal ou não. Assim nasceu o Comando Vermelho. O escritor afirma q a imprensa deturpou seu significado. Na explicação do autor, o Comando Vermelho foi a forma coletiva e organizada de lutar pela sobrevivência com mais dignidade.
William, como tantos outros, ousou escrever sobre o sistema presidiário brasileiro, há muito tempo falido.
Forma de desabafo
Nos livros, autores falam de maus-tratos e tentam fugir da solidão. (essa frase estava debaixo de uma foto)
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